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OACIDENTE

O escalpelamento  transforma a vida de suas vítimas para sempre. Entenda mais sobre as questões que envolvem um dos acidentes mais trágicos da região Norte do Brasil.

O escalpelamento

O estado do Pará possui a segunda maior extensão territorial do Brasil. O estado com tamanho de país abriga 144 municípios, sendo 72 deles com influência hidrográfica. A relação do povo ribeirinho com o rio é muito forte e assume um papel fundamental, a partir do momento em que parte da estrutura econômica está ligada a atividade nos rios. Portanto, no dia a dia dos ribeirinhos da Amazônia, o barco é o principal meio de transporte. Seja para trabalhar, passear, ou até mesmo levar às crianças nas escolas. Por este motivo é o estado que mais registra casos de escalpelamento no Brasil.

ESCALPELMENTO

O acidente ocorre quando os cabelos das ribeirinhas enroscam no eixo do motor de pequenas embarcações sem proteção. Os motores, que podem fazer até 2400 RPM (rotações por minuto) arrancam o couro cabeludo, cientificamente conhecido como o escalpo, de forma abrupta. O escalpelamento pode causar ferimentos gravíssimos e mutilar partes do corpo como orelhas, pálpebras e sobrancelhas. Até 2018 foram registrados 439 casos, de acordo com dados da Secretaria Estadual de Saúde Pública do Pará. Segundo a Sespa, os fatos ocorreram em 46 cidades das 76 que possuem influência hidroviária, a maioria delas na região do Arquipélago do Marajó.

 

Os acidentes acontecem nas embarcações conhecidas como Popopó. O nome é dado devido ao som produzido pelo motor da embarcação. Este modelo começou a aparecer nos rios da Amazônia nos anos 60. Foi nesse período que a população ribeirinha decidiu substituir os barcos à vela e remo por modelos mais velozes. Essas embarcações são artesanais, construídas muitas das vezes pelo próprio ribeirinho. O motor costuma ser adaptado de outra atividade e é colocado no meio do barco para poder dar equilíbrio à embarcação. No processo de instalação do motor, o barqueiro não coloca os principais itens de segurança. Atualmente estima-se que há mais de 60.000 embarcações que não atendem as normas de segurança da Marinha no Pará.

O Popopó é uma das embarcações mais utilizadas na região Norte do Brasil.

Em um primeiro momento, o acidente parece ser facilmente evitável, mas o ciclo do escalpelamento é de alta complexidade. A falta de proteção, a dificuldade na fiscalização e a falta de informação nas áreas mais remotas do estado são alguns fatores que precisam ser analisados com cuidado. Muitas pessoas desconheciam o que era escalpelamento antes de se tornarem vítimas. Torna-se fundamental o trabalho de prevenção, principalmente através das campanhas de conscientização, que recomendam basicamente que os passageiros andem sempre com os cabelos presos. Basta um momento de distração com os cabelos soltos próximo ao motor para que o acidente ocorra. Tudo acontece em questão de segundos a. Na maioria dos casos, as vítimas abaixaram para tirar água do barco ou buscar algo no chão, mas há diferentes relatos relacionados à causa do acidente.

 

As sequelas vão muito além da questão física. As cicatrizes da alma podem levar as vítimas à quadros sérios de depressão. Por este motivo, torna-se imprescindível o acompanhamento psicológico no período compreendido como pós-acidente. As mulheres precisam estar preparadas para retornar à sociedade. Além de passarem por um grande trauma e desenvolverem problemas de autoestima, precisam enfrentar o preconceito e os olhares tortos das pessoas.

 

O acidente faz uma verdadeira reestruturação na vida das vítimas e no seu núcleo familiar. Antes do escalpelamento, grande parte delas vivia da colheita do açaí, da cultura da mandioca e da pesca em um modelo de economia de subsistência, especialmente nas regiões mais remotas do Marajó. Trabalhar depois do acidente muitas das vezes não é uma opção. As sequelas físicas impedem que as mulheres possam desempenhar o trabalho. O sol e o calor são algumas barreiras no caminho. A exposição à radiação solar pode causar fortes dores de cabeça e até feridas no tecido enxertado na cabeça. As mulheres acabam tornando-se improdutivas e afetam a produção e a renda da família.

 

Com o objetivo de reduzir o número de casos de escalpelamento, foi criada em 2007 a Comissão Estadual de Enfrentamento aos Acidentes com Escalpelamento. O grupo de trabalho é coordenado pela assistente social, Socorro Silva. A comissão está inserida na Coordenação de Mobilização Social da Secrataria Estadual de Saúde Pública do Pará. O grupo de trabalho conta com 18 entidades, que realizam um esforço conjunto para combater os acidentes com escalpelamento. As atividades vão desde a realização de campanhas de prevenção nas regiões mais afastadas à confecção de perucas de uma ONG que cuida das vítimas no pós-acidente.

Socorro Silva coordena a Ceeae, que está inserida na Mobilização Social da Sespa.

Atendimento às vítimas

ATENDIMENTO

Muitas das vezes, os acidentes ocorrem em regiões distantes e de difícil acesso. Há uma grande dificuldade em realizar o primeiro atendimento em determinadas localidades. No Marajó II, região mais complexa, os resgates só podem ser realizados até às 15h, de acordo com Socorro Silva. A assistente social ressalta que depois desse horário o local escurece e fica com pouca visibilidade, dificultando o trabalho do piloto do helicóptero. O tempo até o primeiro atendimento é fundamental para que os danos sejam amenizados.

Os pacientes costumam ser encaminhados para três hospitais de referência, localizados nas regiões onde ocorre a maior incidência de casos. Os profissionais destes hospitais passam por treinamentos regularmente e são preparados para atender casos de escalpelamento, por mais complexos que sejam. O Hospital Marajó II está localizado na região com maior extensão dos rios. Fica na região de Breves e atende grande parte dos acidentados no arquipélago do Marajó. Há também o Hospital Tapajós, no município de Santarém, o terceiro mais populoso do Pará. Já o Hospital Regional de Altamira fica situado na região do Xingu. Esses hospitais funcionam como porta de entrada do primeiro atendimento.

 

Existe um protocolo que deve ser seguido assim que o acidente é registrado. O primeiro atendimento de urgência e emergência, em regiões mais distantes, ocorre nos próprios hospitais locais. Belém então é acionada e o paciente é encaminhado para um dos três hospitais de referência. Se a paciente já estiver medicada e estabilizada, é encaminhada diretamente para tratamento na Santa Casa de Misericórdia, em Belém.

 

Socorro Silva afirma que o atendimento na urgência e emergência é importante, pois além do escalpelamento, a vítima pode apresentar outros ferimentos. É comum que ocorram lesões nas costas, fraturas em ossos e até arrancamento da tábua óssea, dependendo da gravidade do acidente. Caso a vítima não tenha passado por esta etapa nos hospitais locais ou só tenha recebido atendimento em um postinho, deverá ser encaminhada para outra unidade hospitalar. Em Belém, ela é recebida no Hospital Metropolitano ou no Pronto Socorro da 14, ambos referência em urgência e emergência no Pará. Sendo realizado o atendimento, poderão ser encaminhadas para a Santa Casa, que só realiza atendimento de urgência e emergência em casos relacionados a partos.

 

A Santa Casa de Misericórdia é referência quando o assunto é escalpelamento. Lá funciona o Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento. O Paives reúne uma equipe multiprofissional. São três médicos cirurgiões plásticos, enfermeiras, fisioterapeutas, psicólogos e um conjunto de profissionais que atendem e dão todo o suporte para as vítimas durante o período de internação. O tratamento costumava ser demorado. Há quatro anos atrás, a média de internação das jovens variava de seis meses a um ano. Com os avanços da medicina, o cenário mudou e o tempo foi reduzido consideravelmente. Atualmente, é raro o caso em que a vítima de escalpelamento fique sob o cuidado do Paives por mais de um mês.

Estatísticas

ESTATISTICAS

Graças ao trabalho conjunto da Comissão de Enfrentamento, os números de casos com escalpelamento vêm sendo reduzidos nos últimos anos. De acordo com dados da Sespa, há o registro de 30 ocorrências de escalpelamento apenas em um ano, ainda na década de 90. Já em 2014 foram cinco acidentes só no mês de julho. Apesar dos bons resultados obtidos, o escalpelamento continua acontecendo nos rios do Pará. O objetivo da Comissão é de que não ocorram mais acidentes com motor e, para que isso aconteça, o trabalho de prevenção deve ser contínuo. Até a publicação desta reportagem, apenas um caso havia sido reportado em 2018. Uma jovem de 14 anos entrou para a estatística de vítimas do escalpelamento, em fevereiro, quando dirigia-se com a família para uma igreja na região de Muaná, no Marajó.

Confira os números de casos envolvendo escalpelamento no Pará, nos últimos 10 anos:

Fonte: Sespa

Dos 439 relatos de acidentes, oito aconteceram com homens. Uma margem relativamente baixa, que representa apenas 2% do total de casos. O índice mostra que o escalpelamento não afeta apenas as mulheres. O acidente é uma ameaça para toda a população ribeirinha, independente de gênero. Os registros apontam que o acidente acomete principalmente crianças e adolescentes. Entretanto, não há regra quando o assunto é a faixa etária das vítimas. Há relatos de crianças que sofreram o acidente com apenas dois anos e de mulheres com mais de 50 anos. O acidente pode acontecer em qualquer lugar e com qualquer pessoa. Socorro Silva faz um alerta. “Tem gente, tem água, tem barco, tem risco. ”

A coordenadora da Ceeae explica que os acidentes não ocorrem apenas em embarcações familiares. O último caso relatado no ano de 2016 aconteceu no transporte escolar, que deveria atender aos requisitos mínimos de segurança para proteger as crianças a bordo. Para evitar que episódios como esse se repitam, a Comissão investe em um contato mais próximo com os barqueiros. São realizadas reuniões periódicas para alertá-los sobre a importância do uso da proteção no eixo do motor. Este é um trabalho focado diretamente nas localidades que mais registram casos de escalpelamento.

 

Socorro afirma que os dados da Sespa foram resultado de um intenso trabalho de pesquisa. Uma equipe realizou uma busca nos arquivos dos hospitais que recebiam as pacientes vítimas de acidente com motor, antes mesmo da Santa Casa tornar-se referência no atendimento ao escalpelamento. Através de dados de prontuários antigos, foi possível chegar a um resultado mais realista do número de casos. O estudo foi apresentado e aprovado por todos os membros que integram a Ceeae.

 

Estes dados reunidos pela Sespa diferem dos apresentados pela Capitania dos Portos da Amazônia Oriental, responsável pela fiscalização nos rios do Pará. Questionada sobre o assunto, Socorro Silva afirma que os dados nunca vão bater e explica o motivo: O número de acidentes apresentados pela Marinha incluem Pará e Amapá, enquanto o da Sespa só contabiliza dos casos ocorridos em território paraense. A coordenadora ressalta a importância de que cada estado tenha sua própria contagem. A partir deste tipo de amostragem, os governos estaduais e municipais podem desenvolver políticas públicas voltadas para o combate ao acidente em suas regiões.

O número de mortes em decorrência do escalpelamento ainda é uma incógnita. Não há precisão no número de vítimas fatais. A coordenadora da Comissão de Enfrentamento afirma que é difícil o escalpelamento causar mortes no momento do acidente, mas que pode acontecer. Segundo ela, há o registro de apenas duas mortes, desde que os números começaram a ser contabilizados. Uma morte em 1987 e outra em 2015. Porém, a possibilidade de o número de óbitos ser maior do que o registrado é grande.

Socorro acredita que este fato seja possível devido à imensidão dos rios do Pará. Muita coisa acontece e não é relatada para a Sespa. Casos desta natureza parecem ser mais comuns no interior do Marajó. Há relatos de pessoas que faleceram ao se acidentarem e foram enterradas na própria região. O óbito claramente não é notificado e a vítima não entra para a estatística da Sespa. O medo é um dos fatores que leva os ribeirinhos a ficarem em silêncio. Como as embarcações costumam ser de cunho familiar, haveria a necessidade de envolver autoridades, registro de boletim de ocorrência, entre outros trâmites burocráticos, que trariam ainda mais problemas em um momento marcado pela dor.

Fiscalização

FISCALIZAÇAO

A Capitania dos Portos da Amazônia Oriental faz parte da Marinha do Brasil. Ela é responsável pela fiscalização do tráfego de embarcações nos rios do Pará. A Cpaor integra a Comissão de Estadual de Enfrentamento aos Acidentes com Escalpelamento e trabalha com o objetivo de encontrar maneiras para aumentar a segurança nos rios da Amazônia. Uma das atividades foco é a instalação gratuita da proteção no eixo do motor das embarcações.

Devido à grande malha de rios, torna-se praticamente impossível fiscalizar todo o território paraense. A Marinha não consegue alcançar determinados locais, muitas das vezes pelo tamanho de suas embarcações. Apenas pequenos barcos circulam em algumas regiões de difícil acesso na região amazônica. De acordo com a Marinha, os ribeirinhos das áreas mais distantes dos grandes centros, escondem as embarcações nos igarapés ao saberem da presença da autoridade marítima. O medo de receber alguma sanção por estarem ilegais dificulta a ação de fiscalização e instalação de novas proteções para eixo.

O pensamento de que a Marinha pode prender a embarcação clandestina existe, mas a instituição vem trabalhado com campanhas para desmentir esta informação. O objetivo do material é mostrar para os barqueiros que o objetivo não é penalizá-los, e sim colocar a proteção no eixo para evitar novos casos de escalpelamento. Mesmo que estejam em situação irregular, os pilotos podem dirigir-se até a Cpaor para fazer a instalação sem custo.

Veja abaixo o vídeo de uma embarcação circulando sem a proteção no eixo do motor:

A estrutura metálica que protege o eixo das embarcações é extremamente complexa. Cada cobertura demora em média duas horas para ser instalada por profissionais da Cpaor. Há relatos de mulheres que retiraram a proteção para fazer a manutenção do motor e não conseguiram recolocá-la sobre o eixo. Estas mesmas mulheres tornaram-se vítimas de escalpelamento posteriormente, na embarcação que já havia recebido a proteção da Marinha.

Modelo de protetor do eixo do motor oferecido pela Marinha do Brasil.

As ações atualmente são focadas nas regiões com o maior número de embarcações artesanais. Na região do Marajó, 90% dos barcos são construídas desta forma. A Marinha já fez ações de cobertura em cinco municípios do arquipélago no ano de 2018. A última foi realizada na cidade de Melgaço, umas das que concentra um alto índice de casos de escalpelamento. Até o último boletim divulgado pela Cpaor, 73 proteções de eixo já haviam sido instaladas em 2018.

O índice de instalações dos dois últimos anos é considerado baixo em relação a outros períodos da série história. A soma da instalação de coberturas no período de 2015 a 2018, por exemplo, representa apenas 34,14% das 1171 coberturas que foram inseridas apenas em 2010. A diminuição do número de coberturas acompanhou a queda de casos de escalpelamento, quando deveria ser justamente o contrário. O trabalho de prevenção deve ser constante para que novos acidentes sejam evitados, mesmo com menos relatos de escalpelamento. Questionada sobre o tema, a Cpaor não respondeu à reportagem.

Veja no gráfico abaixo a número de coberturas instalados nos últimos 10 anos:

Âncora 1

Legislação

Uma lei sancionada em 2009, pelo presidente em exercício José Alencar, prometia um combate mais rígido contra o escalpelamento. Assinada no dia 6 de julho de 2009, a Lei Federal nº 11. 970, de autoria da Deputada Federal Janete Capiberibe (PSB/AP), determina a obrigatoriedade de uso de proteção no motor, eixo e partes móveis das embarcações, com o intuito de aumentar a proteção para tripulantes e passageiras, reduzindo assim, o risco de acidentes.  Essa Lei alterou a  Lei no 9.537, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, no dia 11 de dezembro de 1997 sobre segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional.

 

Ainda de acordo com Lei nº 11.970, caso a embarcação navegue sem a proteção necessária, o infrator está sujeito à medidas administrativas. Em caso de reincidência, a penalidade é triplicada, além de a embarcação ser apreendida e o certificado de habilitação do condutor ser cancelado. Nenhuma dessas punições exime o infrator de julgamento nas esferas civil e criminal, podendo ser responsabilizado judicialmente pelos acidentes envolvendo motor.

 

Para Socorro, a lei não é considerada um divisor de águas no combate ao escalpelamento e sim uma lei que já nasceu morta. As medidas punitivas esbarram na questão cultural do povo ribeirinho. A grande massa de embarcações é de cunho familiar. Portanto, colocar o barqueiro no banco dos réus pelo acidente de algum familiar não parece ser a solução mais eficaz. Há outras formas de fazer o combate ao escalpelamento. A assistente social afirma que há atualmente uma discussão junto à União e ao Ministério Público para poder mudar a questão da penalização. O grupo tenta entender como vai ser aplicada a punição. Ela acredita que a problemática do escalpelamento não vai ser resolvida com lei, e sim com políticas de governo, praticadas por pessoas que entendam a dinâmica dos rios.

 

Janete Capiberibe também criou o projeto de lei 3.397/2012. Há seis anos tramitando no congresso, o projeto pretende garantir que a realização de cirurgias, assistência social e psicológica de forma gratuita. Os atendimentos deverão ser realizados pela rede pública de saúde. Caso não seja possível, o governo deve custear os atendimentos às vítimas na rede privada. A última movimentação legislativa foi em 2015, quando o projeto tramitava na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) e foi apensado ao PL 1879/2007 do Deputado Sebastião Bala Rocha (PDT/AP). O projeto do parlamentar dispõe sobre seguridade social, cirurgias reparadoras e direitos trabalhista para mulheres vítimas de escalpelamento no Brasil e encontra-se atualmente na CFT.

PREVENÇAO

Prevenção

O trabalho de prevenção é realizado durante todo o ano pela Ceeae. Socorro Silva afirma que o enfrentamento ao escalpelamento faz parte de um esforço constante. Não dá para relaxar em nenhum momento! Se o trabalho for interrompido, o número de acidentes volta a crescer e há uma lógica para que isso aconteça. Quanto menos as pessoas ouvem falar sobre o escalpelamento, mais suscetíveis estão ao acidente. Logo, a coordenadora reforça a importância de alertar sobre prevenção nos 46 municípios com registro de escalpelamento e também naqueles que não possuem casos, mas possuem influência hidrográfica. O objetivo é de evitar que novos casos aconteçam em ambas as regiões.

A importância da prevenção: Um trabalho que deve ser realizado o ano todo, segundo Socorro Silva.

A melhor forma de prevenir o acidente é através da informação. A Sespa produz material informativo focado na população ribeirinha. De maneira lúdica e através de animações, são passadas instruções básicas para o leitor. A maneira certa de prender os cabelos com um pitó (como o coque é conhecido regionalmente), sentar longe do motor e não se aproximar do eixo, mesmo que ele esteja coberto são algumas das recomendações dadas no folhetim. O objetivo é utilizar as crianças como agentes multiplicadores da informação. Socorro acredita que as crianças além de aprenderem, conseguem ensinar aos pais sobre o que é o escalpelamento. É uma forma de conscientizar toda a família, especialmente as crianças, que serão os pilotos de barco do amanhã.

Ilustrações em forma de gibi trazem instruções sobre prevenção ao escalpelamento.

Para Socorro Silva, a sensibilização é uma forma de alcançar o público alvo nas campanhas. Através do relato das vítimas, o acidente cria forma e o leitor consegue colocar-se no lugar daquelas que passaram por um grande trauma. Pensando nisso, a Ceeae tem colocado as vítimas de escalpelamento como foco das campanhas. Uma delas é a Sirlene Nascimento (foto ao lado), que sofreu o escalpelamento aos seis anos de idade e já passou por quase 30 cirurgias, incluindo a de reconstrução das sobrancelhas. Outras vítimas como ela deram voz às suas histórias para campanhas de conscientização realizadas pela Ceeae. Maria de Nazaré, da região de Abaetetuba é uma destas mulheres. Confira sua história abaixo, no vídeo cedido pela SESPA.

Durante o ano, ainda são trabalhadas cinco campanhas de reforço. Tratam-se de ações estratégicas, que são empregadas em períodos marcados pela grande circulação de embarcações e pelo histórico relevante de acidentes. Carnaval, Semana Santa, Verão e o Círio de Nazaré são algumas destas datas que movimentam os rios do Pará. Já o mês de dezembro concentra um número ainda maior de embarcações. O período de férias escolares e as festividades de fim de ano exigem que o reforço na campanha seja ainda maior. Há registros de uma sequência de acidentes ocorridos entre o Natal e o Réveillon do mesmo ano.

Além de mostrar quem são as vítimas de escalpelamento, é importante ter uma representante da causa para poder ampliar a voz destas mulheres. Um rosto conhecido pelos paraenses foi a estrela da campanha de combate ao escalpelamento, divulgada nacionalmente, em 2013. A atriz Dira Paes abraçou a causa e tornou-se madrinha campanha, que foi amplamente divulgada em diferentes veículos de comunicação. Dira é natural da cidade de Abaetetuba, mesma região da Maria de Nazaré, onde acontecem muitos casos de escalpelamento. A campanha foi realizada pelo Conselho Federal de Medicina em parceria com o governo do Pará.

Assista ao comercial veiculado durante a campanha. Mais abaixo, o spot de rádio que foi veiculado com foco nas passageiras das embarcações:

Spot Passageiros - Dira Paes
00:00 / 00:00

Além das campanhas, outras políticas podem ajudar a frear o escalpelamento. Um modelo adotado pela Comissão parece já estar surtindo efeito. A instalação de comitês municipais, que funcionam nos mesmos moldes da Ceeae, alcança quase todos os municípios com ocorrência de escalpelamento. Dos 46 registrados, 38 já possuem um comitê próprio. Este tipo de trabalho começou a ser realizado em 2016, quando os municípios passaram a trabalhar os seus próprios planos de prevenção. De acordo com Socorro, o Estado entende que essa deve ser uma política assumida pelos governos municipais e que os gestores precisavam assumir a responsabilidade da prevenção:

- Os municípios possuem os agentes comunitários de saúde e agentes comunitários de endemias, que conseguem chegar em locais de difícil acesso. – analisa a assistente social. Ela ressalta e descreve a importância do trabalho dos agentes comunitários no vídeo abaixo:

Para incentivar ainda mais o trabalho realizado pelos municípios, o governo estadual decidiu criar o selo “Escalpelamento Zero”. As localidades que não registrarem casos com escalpelamento durante o período de um ano, receberão o selo acompanhado de um incentivo financeiro do governo estadual. A aposta é de que o gesto fará com que os municípios trabalhem mais e assumam a responsabilidade pelo acidente. É um método que solidifica o trabalho de prevenção, que deve ser constante.

O trabalho de combate ao escalpelamento só é possível devido a rede de parceiros, que conta com a Cpaor. Além de fazer a instalação da proteção no eixo dos motores, a Marinha realiza ações preventivas ao realizar palestras e distribuir material informativo com o objetivo de conscientizar a população sobre o escalpelamento. Também auxilia a Sespa em ações realizadas através da Ceeae. Uma delas é realizada anualmente durante a semana que antecede o Dia Nacional de Combate a Acidentes com Escalpo, celebrado dia 28 de agosto. Os 12 últimos municípios que registraram ocorrências de escalpelamento, recebem uma programação de atividades que acontecem simultaneamente em todas as cidades.

Atualmente, a Comissão investe também em um trabalho de abordagem direta com os ribeirinhos. O objetivo é ir direto à população e explicar os riscos e consequências do escalpelamento. Mesmo com todas as dificuldades impostas e com uma equipe reduzida, Socorro conseguiu formar uma rede atuante. Associação de barqueiros, associação das mulheres, pastorais e profissionais saúde da atenção primária são alguns dos parceiros firmados. Alcançar estes grupos é fundamental para poder mostrá-los que o escalpelamento é um acidente evitável e que é preciso sensibilizar para que ele não aconteça, de acordo com Socorro.

- O acidente com escalpelamento é um acidente que pode ser evitado. Basta você não duvidar que ele não vai acontecer com você. – adverte a coordenadora da Ceeae.

BENEFICIO

Benefícios Sociais

O acidente gera impacto em torno do convívio familiar da vítima, principalmente na questão da renda. As famílias ribeirinhas do interior costumam ser grandes e podem passar dos 10 integrantes. A economia familiar é proveniente do plantio da mandioca, da farinha, extrativismo da fruta, do açaí e da castanha. Devido à gravidade do acidente e das sequelas causadas, as vítimas não podem mais atuar nestas funções, o que afeta diretamente a renda de toda a família.

Observando este cenário, o Espaço Acolher vem trabalhando para tentar inserir as famílias nos benefícios sociais através do Benefício de Prestação Continuada. O BPC, como é popularmente conhecido, é pago pelo INSS ao idoso e ao portador de necessidades especiais. Luiza dos Santos, secretária administrativa do Espaço, afirma que tem encaminhado os casos para perícia, mas não é sempre que o benefício é concedido. Quando é autorizado permanente, deve ser reavaliado a cada dois anos. Luiza choca ao revelar que peritos alegam que as vítimas não possuem deficiência e podem voltar a trabalhar de imediato. Alguns negam o laudo de invalidez e argumentam que o couro cabeludo foi apenas arrancado.

Cabe ao município conceder outro tipo de benefício:  O Tratamento Fora de Domicílio. O TFD consiste na ajuda de custo para que as vítimas de escalpelamento possam retornar à capital e dar continuidade ao tratamento. O valor fixo é baseado na diária de cada paciente e deve assegurar o valor das passagens, tarifas para locomoção, hospedagem e gastos com alimentação. Entretanto, os municípios não estão correspondendo às necessidades das vítimas. Há um embate que vem sendo travado para que as autoridades municipais se responsabilizem pelo pagamento. Na maioria dos casos, quando o benefício concedido, é pago apenas o valor do deslocamento entre a cidade e a capital. Os recursos acabam sendo insuficientes para que muitas das vítimas deem continuidade ao tratamento.

Luiza Santos ao lado de um trabalho realizado pelas alunas da Classe Hospitalar.

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